quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Ter um cão...

Cá em casa mora um cão, ou melhor, uma cadela, e muitas, muitas vezes me tenho perguntado que espécie de feitiço se terá apoderado de nós quando lhe pusemos a vista em cima, já que é um feitiço que dura, que se multiplica, que nos faz suspirar de cada vez que ela é apenas o que é, uma cadela.
Sejamos objectivos: ela é, por mais voltas que lhe queiramos dar, feia. Orelhas pontiagudas; focinho afunilado, meio lobo, meio raposa; olhinhos castanhos e deveras míopes onde não se vê o branco; um nariz esponjoso e perenemente molhado; uma língua babosa, encharcada; pêlo que se acumula em camisolas, pelo chão, por toda a casa; dentinhos (ou melhor dentões) sempre prontos a fazer disparates - seja roer brinquedos do bebé a estraçalhar t-shirts da menina. Rouba comida, desde as coisas mais usuais como bifes que estão a descongelar até cenouras e cascas de batata (gosta especialmente de cenoura). Tem um vozeirão de trovão que assusta o carteiro, os homens das entregas e a ocasional visita menos avisada. Quando gosta de uma pessoa tem tendência a pendurar-se nela, não sabendo que, com cerca de quarenta quilos, não é propriamente pequenina. Tem um certo ar de ursa e os ursos não são bonitos, ou são? Sejamos rigorosos, ela é muito feia.
É tão feia que vamos muitas vezes na rua e as pessoas mudam de passeio para não se cruzarem com ela, mesmo que ela vá na sua vidinha de cão, muito entretida a cheirar tudo e a tentar arrastar quem a passeia. Quem se aproxima normalmente fá-lo porque acham que é algum cão de guarda daqueles bem ferozes, muito ao gosto das forças especiais e eu nunca conto que, se ela fosse fazer alguma prova de coragem, envergonharia para sempre os pergaminhos de bravos cães de trabalho que lhe correm no sangue, pois é uma medricas, que se mete na nossa cama quando ouve trovões e que tem medo do Yorkshire da vizinha (o meio termo entre cão e rato deve confundi-la). Não a treinámos para ser feroz, criámo-la apenas como um membro da família.
Ela é feia, não duvidem, mas então, porque é que nos derretemos todos quando ela mostra a barriguinha e sorri para nós com toda a dentuça (os cães sorriem, não sabiam?); porque me desvio, na MINHA cama, quando sua excelência quer repousar a meu lado? Porque adoro escová-la, limpá-la e me preocupo se o nariz está seco, se dorme mal, se o veterinário não atende e eu imagino que ela está doente? É que ela é tão feia!
Já dizia a minha avó: «Quem feio ama, bonito lhe parece.». Será isso? Será que no meio de tanta baba e hálito a cheirar a borrego da ração, cá em casa vemos beleza?
Beleza no amor incondicional que nos retribui; beleza na forma como não abandona um de nós quando está doente; beleza na forma como se levanta e sai do caminho quando o bebé passa; beleza na forma como é companheira incansável da Miana nas correrias pelo quintal; beleza na forma como adora ser atormentada pelo meu marido com pauzinhos e brinquedos nos passeios que adoram dar juntos e, até, como é possível, beleza na forma como me levanto de madrugada quando ela chama por mim porque tem calor e precisa de mais água.
Beleza porque ela é nossa, incondicionalmente, porque entrou na nossa vida e demonstra que nos ama a todos, querendo apenas em troca alguns mimos que são poucos para toda a dedicação que decidiu votar-nos.
Porque é realmente um mistério: é feia e peluda, mas é nossa. Nós somos dela, os humanos dela, e temos a graça e o privilégio de a ter como cão.

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