sábado, 4 de agosto de 2012

Iguaizinhas...

Toda a gente diz que eu e a minha filha somos iguais, que parecemos irmãs tal a parecença, que temos o mesmo tom de voz, o mesmo tipo de corpo, os mesmos olhos, o mesmo sorriso.
Toda a gente o diz, mas eu, como mãe, confesso que nunca vi essa semelhança. Sim, temos o mesmo tom de cabelo; sim, herdou os olhos grandes e negros da família do meu pai e também é pequenina como eu (se bem que um pouco mais alta, graças a deus!). Sim, isso é tudo verdade, mas em Portugal, 90% da população tem o cabelo castanho; 80% terá olhos escuros e, vá lá, grandes serão uns 40%. Ela é parecida comigo porque somos do «mesmo género» e, é bem possível que, em adulta, continuemos a ser. Mas fisicamente, é só isso. De facto, sempre a achei parecidíssima com a tia, apesar de todos teimarem que não, que não era, forçando-me quase a concordar para não levar o assunto mais longe (porque quase me sinto mal por eu, sua mãe, ser a única a achar que não somos parecidas, tal é a insistência dos que nos rodeiam).
Outro motivo porque nunca achei que éramos parecidas prende-se com os nossos feitios: ela é fogo, ar, turbilhão, eu sou a acalmia. A minha filha tem o condão de iluminar uma sala, de repararem nela onde quer que esteja e, já eu, tenho o condão de me fundir na paisagem, de estar no meu canto. Ela é completamente despassarada; não liga a nada do que é seu; vive num mundo feito por ela mesma e leva-me ao desespero com a desorganização perene que espalha por onde quer que passe. Em contraste, eu organizo livros como se estivesse numa biblioteca (por autores, cronologicamente, por temas e línguas), gosto de arrumar coisas por cores e confesso que passo demasiado tempo em blogs sobre economia doméstica.
Porém, hoje, a minha sapiência materna quedou-se estupefacta, pois essa verdade que eu julgava imutável, como se a diferença entre mim e ela fosse algo escrito na pedra, essa verdade, dizia eu, ficou virada do avesso.
Hoje a Mariana partiu para uma semana no Algarve com a melhor amiga e com os pais dela e o que, por esse facto, já se trata de uma data completamente assinalável cá por casa no geral e, em particular, para o meu coração de mãe-galinha, pois ela nunca foi assim, para «fora» com pessoas que não são da família (mas que são para lá de gente querida). Contudo, não foi esse o motivo da minha epifania materna.
Depois das peripécias várias que implicam verificar a lista de coisas dela, fechar a mala, voltar a verificar a lista, vestirmo-nos todos (eu, ela e o irmão de nove meses), deixar tudo pronto para ser só pegar na tralha quando a viessem buscar, lá conseguimos sair para ir tomar o pequeno-almoço. Estávamos sentados no café e notei-a mais apagada, menos faladora do que o costume, enfim, menos Mariana. Pensei que seria ansiedade pela semana de separação e disse-lhe que estava tudo bem, que ia correr tudo às mil-maravilhas, que seria uma diversão contínua. Respondeu-me, cabisbaixa, que não era isso:
- Então o que é, filha? - perguntei já de coraçãozito apertado.
- É que... estamos todos e o pai tem de estar a trabalhar... Não gosto de tomar o pequeno-almoço sem o pai.
E foi ali que se deu a revelação. A Mariana é muito expansiva em todos os planos da sua vida, é uma miúda extremamente carinhosa, mas não vocaliza nada os seus afectos e, muitas vezes, parecemos uns tontos de tanto perguntar se «gostas de nós, não gostas», «sabes que os papás te amam muito, não sabes». Enfim, mendigamos muito essa vocalização porque é rara e sempre foi assim, desde pequenina. Mas hoje percebi que, afinal, a minha filha-turbilhão, sempre uma alegria, sempre estrondo e animação, consegue ser a minha imagem no que respeita aos sentimentos, de uma reserva extrema, ciosa de partilhar o que é o seu íntimo. Vi-lhe nos olhos o quanto a incomodava, porque as saudades apertavam, o pai não estar connosco neste pequeno-almoço que tinha um cheirinho especial e vi, pela primeira vez, com extrema clareza, que afinal ela era tão, tão como eu, num plano fundamental da sua vida: nos seus afectos e nas suas demonstrações. Que, tal como em mim, os silêncios gritavam muitas vezes porque o que lhe vai na alma é irreprimível.
Eu pensava que éramos tão, tão díspares, tão extremadas nas nossas maneiras de ser e, afinal, hoje vi, claro como o dia, que somos, afinal, afinal, afinal, iguaizinhas.